Dispositivo prevê o não ressarcimento de crédito inutilizado em um ano; TCE iniciou devassa na operação em 2014
RIO —
Operado pelos empresários de ônibus, o sistema pré-pago de viagens com cartões da RioCard produz receitas extras milionárias para o setor. Os usuários, por sua vez, podem sair no prejuízo. Isso porque um dispositivo legal prevê que os créditos dos bilhetes expiram 12 meses após a aquisição - e os valores não são devolvidos aos passageiros. Apenas nas linhas intermunicipais, em cinco anos as empresas embolsaram R$ 90 milhões desses créditos, de acordo com informação repassada pela Federação das Empresas de Transporte (Fetranspor) ao Tribunal de Contas do Estado (TCE).
O valor se refere a serviços prestados por 62 empresas, que operam 660 linhas, responsáveis pelo transporte diário de 1,8 milhão de pessoas. Mas a quantia deve ser maior. Isso porque a regra de cancelamento de créditos pela RioCard, que é controlada pela Fetranspor, vale para qualquer tipo de transporte público operado com bilhetagem eletrônica - incluindo metrô, trens, barcas, vans e as linhas municipais de ônibus. A empresa também administrará os bilhetes do futuro VLT carioca.
O valor de R$ 90 milhões veio à tona após quase um ano de queda de braço entre as autoridades do estado e os empresários. A Fetranspor e a RioCard só forneceram o dado em agosto, depois de obrigadas pela Justiça, sob pena de R$ 5 milhões em multas diárias.
A base legal para a perda de validade dos créditos é o artigo 19 da lei 5.628/2009, que regulamentou o Bilhete Único (BU) e sistemas semelhantes. Como, no entanto, não definiu quem deveria ficar com as sobras após esse período, o valor residual não é devolvido pela RioCard.
- Considero isso uma apropriação indébita de dinheiro do usuário - disse o deputado estadual Luiz Paulo Corrêa da Rocha (PSDB), que tem projeto em tramitação para tentar alterar o modelo.
O impasse sobre o destino dos R$ 90 milhões começou quando o TCE decidiu, em 2014, fazer uma devassa na operação das empresas. Além do modelo pré-pago, outro alvo da investigação foi a gestão do Bilhete Único Intermunicipal (BU), cuja operação é subsidiada pelo estado, caso o usuário precise pegar um segundo transporte coletivo em até três horas para chegar ao seu destino Neste caso, a prestação de contas se dá mediante relatórios emitidos pela RioCard sobre o total de passageiros transportados. Também no BU foram registrados problemas.
A auditoria, que está em fase de conclusão pelo TCE, encontrou casos em que o número declarado de passageiros era 19 vezes maior que o efetivamente transportado. Em tese, isso pode levar um operador a receber subsídios indevidos.
Os auditores também descobriram casos em que praticamente na mesma hora, em locais distantes, o sistema registrava um mesmo passageiro usando o Bilhete Único. A checagem foi possível com o cruzamento dos CPFs vinculados aos titulares dos cartões. Outra irregularidade foi o uso excessivo de bilhetes vinculados a CPFs de crianças com até 5 anos. Nessa faixa etária, as crianças são isentas de pagar passagem, desde que não ocupem um assento próprio e fiquem no colo dos pais.
A devassa identificou outros problemas. O controle dos subsídios a partir da informação dos CPFs foi previsto na regulamentação do BU, como uma forma de evitar fraudes. Mas os técnicos do TCE constataram que o Departamento Estadual de Transportes Rodoviários (Detro) não tem infraestrutura necessária para analisar as informações repassadas pelas empresas em relação ao volume de passageiros.
Segundo dados fornecidos pela Secretaria estadual de Transportes a pedido do deputado Eliomar Coelho (PSOL), o governo repassou cerca de R$ 2,3 bilhões em subsídios para os diversos modais de transporte público entre fevereiro de 2010, quando o BU foi implantado, e junho deste ano. Da soma total, R$ 1,8 bilhão (78,2% do total) foram para as empresas de ônibus. Em seguida, ficaram vans (R$ 160,2 milhões), CCR Barcas (R$ 123 milhões), MetrôRio (R$ 94,4 milhões) e SuperVia (R$ 93,8 milhões).
Há pouco mais de um ano, quando as investigações do TCE começaram, um primeiro relatório foi divulgado, já identificando que o setor de ônibus é pouco transparente. Agora, um segundo documento deverá ser votado nas próximas próximas duas semanas. Uma vez aprovado, o TCE vai pedir providências à Secretaria estadual de Transportes para combater as irregularidades encontradas.
O secretário de Transportes, Carlos Roberto Osorio, disse que o governo já mantém uma auditoria própria do RioCard, que até agora não identificou irregularidades nas informações. Mas, ressaltou, isso não torna a operação do serviço livre de fraudes:
- Os problemas identificados não tiveram origem no RioCard. Em Itaguaí, uma empresa teve as linhas cassadas porque declarava transportar mais usuários do que efetivamente levava. Pelo menos 20 operadores de vans foram descredenciados porque registravam mais passageiros que a capacidade dos veículos. Estamos buscando aperfeiçoar o sistema. Acabamos de aprovar na Alerj um sistema de identificação dos usuários do RioCard com biometria facial - disse Osorio.
Em relação às receitas geradas pela extinção dos créditos, ele disse que não recebeu o documento entregue ao TCE e não tem opinião formada sobre o tema.
A briga judicial teve início depois que a Secretaria estadual de Transportes aceitou a alegação da RioCard, de que os dados sobre os créditos expirados não seriam divulgáveis por serem confidenciais, já que se tratava de uma relação privada entre a empresa e os usuários. O TCE chegou a aprovar em plenário uma determinação para que os subsídios fossem suspensos, até a informação ser fornecida. Os dados não foram liberados, mesmo depois que os repasses deixaram de ser feitos por 15 dias. A pedido da Secretaria de Transportes, que reviu sua posição, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) entrou na Justiça, para tentar obter o dado. A PGE ganhou em primeira instância. Os empresários recorreram, mas a decisão foi mantida.
A informação sobre o excedente dos créditos do RioCard foi prestada, mas o mistério sobre como esse dinheiro é empregado continua. No processo, a Fetranspor alegou que os créditos expirados seriam usados exclusivamente na implantação, manutenção e modernização do sistema de bilhetagem, "sem o repasse de um centavo sequer às concessionárias". No entanto, nenhum documento foi anexado comprovando as despesas.
O fato é que, na prática, tanto o controle das receitas do BU, como o dos créditos não utilizados fica com os empresários do setor. A gestão da bilhetagem eletrônica é feita pelas empresas RioCard Cartões (que gerencia os créditos) e RioCard TI (responsável pelos softwares). Elas são subordinadas à Riopar Participações e aparecem no organograma da Fetranspor. O presidente do conselho de administração da Riopar é Jacob Barata Filho, herdeiro de Jacob Barata, conhecido como "Rei do ônibus". Os dois controlam o Grupo Guanabara, que opera algumas das principais empresas do setor na Região Metropolitana do Rio.
O presidente da Fetranspor e do Sindicato das Empresas de Ônibus do Rio, Lelis Marcus Teixeira, é também um dos diretores da Riopar. Tem ainda um cargo de comando na RioCard Cartões e na RioCard TI, de acordo com o site Infoplex, especializado em busca de controles societários. Outros empresários de ônibus e conselheiros da Fetranspor aparecem na diretoria dessas empresas.
Desde outubro, O GLOBO tem solicitado informações à RioCard sobre o valor de créditos expirados de todos os modais. A pergunta foi reiterada na última sexta-feira, mas de novo não foi respondida. Em nota, a RioCard afirmou que cumpre rigorosamente o que determina a lei 5.628/2009 e que passageiros e empresas têm acesso à informação sobre os saldos dos cartões até mesmo pela internet, para racionalizar o uso e evitar o vencimento dos créditos.
"É importante ressaltar que os valores dos créditos são revertidos exclusivamente para a manutenção e modernização do sistema de bilhetagem eletrônica e não envolvem repasse de recursos públicos (como o subsídio do governo do estado ao Bilhete Único Intermunicipal), nem são destinados às empresas de ônibus", diz a nota.
A empresa compara créditos do RioCard às passagens emitidas por companhias aéreas, que também têm prazos de validade. Sobre a operação do Bilhete Único, a RioCard informou que os dados operacionais, além de auditados, são transmitidos on-line para o governo do estado, que tem a atribuição de fiscalizar o uso do benefício. "Vale lembrar que o subsídio do Bilhete Único Intermunicipal é pós-pago - o governo só entra com o complemento caso seja realizada a integração", diz a nota.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/em-cinco-anos-setor-de-onibus-ficou-com-90-milhoes-em-creditos-expirados-do-riocard-18054625#ixzz3raACGL1e
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