Modelo de ônibus da Marcopolo foi produzido num momento decisivo para o transporte de pessoas, que, sem exageros, determinou os rumos da mobilidade do Brasil
ADAMO BAZANI
Quando alguém fala em San Remo, a primeira imagem que vem à cabeça é do famoso festival de música italiana, chamado oficialmente de Festival della canzone italiana, que é realizado sem interrupção desde 1951. A história do festival, no entanto, é mais antiga ainda e teve origem em 1946, quando um floricultor de San Remo, uma pequena localidade no norte da Itália, que na época tinha como principal atividade econômica a plantação de flores, chamado Amilcare Rambaldi, propôs a criação de um festival de música. A ideia, no entanto, não foi para frente na ocasião, justamente por causa dos efeitos da Segunda Guerra Mundial.
A ligação do Brasil com o Festival de San Remo é bem forte. Um dos ápices na história foi na edição de 1968, quando Roberto Carlos foi vencedor, conquistando o primeiro lugar com a música Canzone per te, de Sergio Endrigo e Sergio Bardotti. Foi pela primeira vez na história do evento que uma música defendida por um cantor que não era italiano conquistou o Festival.
A relação entre o Brasil e o nome San Remo não se dá apenas nos palcos e pelas canções, mas também nas estradas, ruas e avenidas num dos momentos mais importantes do País.
San Remo foi também o nome de um dos modelos de ônibus da Marcopolo, hoje a maior fabricante de carrocerias do país e uma das mais importantes do mundo, estando na lista das multinacionais brasileiras. Uma das características históricas da empresa é atribuir nomes italianos aos modelos por causa de sua direção.
Em diferentes versões, o San Remo foi fabricado entre os anos de 1974 e 1983, com unidades para projetos especiais até 1985.
Foi uma das épocas mais relevantes para o crescimento industrial do país, para a formação de uma identidade brasileira predominantemente urbana e, claro, para o segmento dos transportes que reflete e contribui diretamente na evolução social e econômica do país, além de permitir o crescimento pessoal de milhões de cidadãos a cada dia.
O título desta matéria especial não poderia ser outro: San Remo, o ônibus, foi um festival de evolução e os transportes devem muito a este modelo que às vezes não recebe a atenção merecida quando o assunto é história da mobilidade.
Só para você ter uma ideia, o San Remo foi ônibus com cara de caminhão, ônibus Romeu e Julieta – um antecessor do articulado, ônibus articulado propriamente dito, trólebus, ônibus alongado, ônibus para exportação, ônibus para andar na terra e foi um dos ônibus que marcaram o início de uma nova padronização que trouxe maior qualidade nos transportes urbanos, com a implantação do Padron. É isso mesmo! Tudo em um único modelo, porém em diferentes versões.
Toda esta versatilidade era reflexo de um país gigante, com diferentes realidades, e também de um país em plena transição.
O San Remo tem outra face na história: marcou um dos momentos mais importantes da história da produtora Marcopolo, que já era grande na época, mas se tornou gigante e mundial.
Enquanto as primeiras versões do San Remo eram produzidas, a Marcopolo dava um salto no segmento de ônibus.
Em 1977, a Marcopolo adquiriu a Nimbus, marca de carrocerias que começaram a ser produzidas em 1968 pela manufatura Furcare S.A., empresa fundada em 1959 na cidade de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. Em 1967, a Furcare teve a administração assumida pelos irmãos Doracy Nicola e Nelson Nicola, sócios e fundadores da encarroçadora Nicola.
Vale lembrar que Nicola foi o primeiro nome da Marcopolo, fundada em 1949. A mudança para o nome Marcopolo teve origem em 1968, quando no VI Salão do Automóvel, a empresa renovou a linha de ônibus rodoviários e lançou o modelo Marcopolo. Em agosto de 1971, finalmente a Nicola teve a razão social mudada para Marcopolo S.A. Carrocerias e Ônibus. O nome tinha sido alterado por dois motivos. Um deles foi sucesso do modelo Marcopolo que acabou conquistando no mercado um nome mais forte do que da própria marca Nicola. O outro motivo é que curiosamente, nesta época, não havia mais nenhum Nicola à frente da empresa Nicola.
A continuação da fabricante de carroceria, mesmo depois da saída de todos os Nicola, e a mudança de nome para Marcopolo teve um personagem visionário à frente. Era Pedro Paulo Bellini nascido em 20 de janeiro de 1927, e que participou dos primeiros anos da Nicola, quando em 1951, precisou da ajuda do pai, Alberto Bellini, para completar o dinheiro que precisava para comprar a parte que era de sócios alemães: 240 mil cruzeiros.
A Nimbus continuou operando com esse nome até 1979, quando foi incorporada pela Invel – Indústria de Veículos e Equipamentos Especiais Ltda, empresa da Marcopolo, que fazia, entre outros produtos, micro-ônibus.
Não foi à toa que as últimas versões do modelo Nimbus Haragano tinham linhas muito semelhantes à do San Remo, da Marcopolo. É que quando foi absorvida pela Invel, a planta da Nimbus continuou operando, mas sem o nome. O Haragano depois foi continuado como uma versão do San Remo. A planta da Nimbus foi fechada definitivamente em 1983.
Nesta época também, a Marcopolo teve uma planta em Minas Gerais. Era a Marcopolo Minas S. A., na cidade de Betim, criada em 1979.
Um dos anúncios na ocasião mostrava um San Remo que tinha no letreiro escrito Marcopolo Minas S. A.
VÁRIOS NOMES – A CARA DO BRASIL.
Como foi possível ver mais acima no texto, o San Remo teve diversas aplicações, desde para tráfego em áreas difíceis até na concepção de um novo padrão para o transporte coletivo brasileiro.
Diante de tudo isso, o San Remo recebeu diversos nomes, nas suas mais variadas versões. Alguns oficiais da Marcopolo, outros dados pelo mercado, entusiastas e profissionais que atuavam nas ruas e nas garagens. Entre os nomes se destacam: Marcopolo San Remo, Marcopolo San Remo I, Marcopolo San Remo ST, Marcopolo San Remo Expresso, Marcopolo San Remo Intermunicipal, Marcopolo San Remo II, Marcopolo San Remo Padron, Marcopolo San Remo II Articulado e até outros mais.
O ônibus Marcopolo San Remo, em sua primeira versão, foi apresentado ao mercado em 1974, época de muita concorrência no setor, quando eram disponibilizados pelas outras encarroçadoras ônibus também de muita qualidade.
O San Remo coexistiu com outro ônibus que foi sucesso da Marcopolo, o Veneza, criado em 1971. Apesar de os dois ônibus serem destinados para os transportes urbanos e interurbanos, o fato de os dois praticamente viverem numa época só era perfeitamente aceitável, já que havia diferenças nas propostas entre ambos.
O Veneza era uma espécie de ônibus urbano Premium da Marcopolo. O San Remo nasceu com a proposta de ter uma melhor relação custo/benefício, além de ser mais leve.
Entre as características iniciais do San Remo estava o letreiro maior.
A visibilidade no San Remo também foi uma das preocupações da Marcopolo que dotou o modelo com janelas amplas.
Os ângulos nas partes da frente e da traseira da carroceria do San Remo passavam um ar de modernidade.
A primeira versão do San Remo foi produzida entre os anos de 1974 e 1979. Na mesma época estavam no mercado o San Remo Intermunicipal, que tinha uma caída na parte superior dianteira e um melhor acabamento interno, e o San Remo Expresso, carroceria desenvolvida para chassis de motor traseiro, que como característica, tinha uma área envidraçada maior no lugar onde ficava o motor na versão com a propulsão dianteira.
Uma página muito curiosa da história do San Remo foi em 1978, quando o modelo recebia a frente de caminhões Mercedes-Benz, principalmente de plataformas L-1113.
Esta versão foi comum em outros países da América Latina, mas também pode ser vista em áreas de difícil acesso no Brasil.
A robustez era uma das principais características.
O San Remo já na sua primeira versão foi sucesso no país e no exterior. Algumas unidades foram embarcadas até mesmo para o continente africano, mas o sucesso maior de vendas para o exterior foi a América Latina.
Também foram vistos nesta época, Marcopolo San Remo no estilo Romeu e Julieta. Era uma espécie de antecessor do ônibus articulado. O veículo ônibus puxava um reboque que também levava passageiros.
Mas houve também San Remo Articulado.
No ano de 1978, o San Remo ganhava uma nova versão, denominada San Remo II, com linhas ainda mais modernas, maior espaço interno e novos materiais.
Foi com San Remo II que a Marcopolo produziu uma nova geração de trólebus, usada em diversos sistemas, principalmente no Estado de São Paulo, como em Araraquara e na capital paulista.
Também a partir do San Remo da segunda geração que a Marcopolo contribuiu para o desenvolvimento de um padrão novo de ônibus para o Brasil.
Era o projeto Padron – Estudo de Padronização dos Ônibus Urbanos.
O objetivo do GEIPOT – Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes, ou Empresa Brasileira de Planejamento dos Transportes, na época, era oferecer conforto e segurança no transporte urbano brasileiro, além de características que permitiriam economia de combustível.
Vale lembrar que o mundo vivia na ocasião uma das grandes crises do petróleo.
Não havia uma padronização para construção de ônibus.
Os conceitos do Padron são usados até hoje pela indústria nacional.
O Padron foi desenvolvido a partir de 1977 e teve diversas etapas. Em 1978, os técnicos e engenheiros criaram as especificações técnicas para carrocerias e chassis. No ano de 1979, o relatório parcial com as características de desempenho mecânico foi entregue a três fabricantes brasileiros de chassis. Mercedes-Benz, Scania e Volvo.
A última etapa consistiu na construção de cinco protótipos de carrocerias pela Marcopolo, Caio e Ciferal.
Entre 1980 e 1981, os veículos circularam por oito meses em Brasília e outras seis capitais, transportando mais de 900 mil passageiros, o que permitiu que em 1983 fosse publicado o relatório final do projeto.
Entre as exigências básicas que os ônibus Padron precisavam atender estavam:
Localização do motor: Traseira ou no entre eixos
Características do motor: Potência/Torque acima de 9 kw/t e 40 Nm/t
Nível do ruído: abaixo de 75 db (A)
Nível máximo de emissões: esc 4 alt. 500mm
Transmissão: Obrigatoriamente automática
Suspensão: Obrigatoriamente pneumática
Chassi: Especificamente para ônibus com baixa altura do piso
Sistema de freios: Pneumático, dois circuitos e freio de estacionamento independentes
Painel de instrumentos: Sinalização de advertência, luz central de alarme e informações básicas para o motorista.
Durabilidade Mínima: vida útil de 800 mil KM – 10 anos de operação
Comprimento total: 12000 mm
Largura: 2600 mm
Portas laterais: 3 portas de 1100 mm de largura e 2000 mm de altura
Altura máxima do primeiro degrau: 370 mm
Passageiros sentados: 37
Passageiros em pé: 47
E foi com base no San Remo da segunda geração que a Marcopolo foi uma das empresas que contribuíram para o projeto Padron.
O San Remo deixou de ser fabricado em linha no ano de 1983, embora que até 1985 alguns projetos especiais como de trólebus articulados receberam a carroceria.
O modelo abriu caminho para o Marcopolo Torino que, com as devidas modernizações, é fabricado até hoje e é o ônibus urbanos mais longevo da história da indústria nacional de veículos e transporte coletivo.
Assim, por todos estes fatos e tantos outros mais que sequer foram relatados, o modelo San Remo merece este registo.
Adamo Bazani, jornalista especializado em transportes
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